"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos." Charles Chaplin

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Proposital

Foi em meio ao caos, gritaria, estalidos, sirenes e calor que Michele acordou. Seus olhos pareciam estar colados um no outros e sentia dor em cada extremidade de seu corpo. Ela tentou mexer o braço, mas ele parecia muito pesado. Podia sentir algo tocando o seu abdômen e algo pressionando seu braço, era gelado. Ela tentou falar, mas se surpreendeu com o gemido de dor que deixou escapar.
“Concentre-se”, ela se repreendeu. Parecia agora estar em movimento, e estava deita. Barulho. Ela não conseguia entender. As conversas, antes no fundo, parecendo o barulho de uma cachoeira, agora estavam altas. Gritos e sussurros. Choros? Sim, uma criança talvez. Michele se desesperou. Os olhos ainda pesados se recusavam a abrir e um acesso de tosse a fez balançar. Foi aih que sentiu a dor na garganta. Estava áspera e parecia que tinha comido areia. Ela ofegou, engasgando em seguida. Algo a tocou na testa.
- Ela não está com febre, talvez seja melhor deixá-la aqui! – quem era?
- Não! – era um homem agora e o movimento parou.
- O que você precisa? – Uma mulher, sua voz estava rouca.
Varias coisas a tocavam agora.
- Curativos, água, talvez...
- O de sempre! – a mulher o interrompeu.
Algo massageou sua perna e o que parecia ser um gel amenizou a dor em seu braço.
- Você está certo. A perna não está quebrada, e as queimaduras não estão tão feias.
Como uma chave abre uma fechadura, as lembranças de ultima noite tiraram seu fôlego. Lembrou do fogo subindo as cortinas, do calor, da escada desabando. Ela estava com sua irmã no colo quando o teto desabou. Lembrou também de sua mãe gritando para ela correr, seu rosto suado e sujo de cinzas estava sereno. Ela estava caída no chão com seu marido no colo, cercada pelo fogo. Ele não se mexia. Lembrou do desespero e da duvida de ficar e salvar sua mãe ou salvar sua irmã. Ela abriu os olhos e gritou. Varias mãos tentaram a segurar no que agora entendeu que era uma maca, mas não. Ela queria ver. Queria ver se tinha conseguido. Talvez salvaram sua mãe também.
- Me soltem! – ela gritou ferozmente, balançando as pernas e pulando no asfalto.
Com os olhos embaçados ela saiu correndo em direção ao fogo, suas pernas doíam e os braços queimavam. Parecia também que havia pregos em sua garganta. Ela ignorou os policiais e pulou a fita que cercava seu jardim. Alguns bombeiros a viram e começaram a correr em sua direção, mas então, como se recebesse um chute em seu estômago ela parou e escorregou na grama, ofegando, vendo sua casa desabar e o fogo consumi-la. Então ficou ali, caída. Os que a seguiam estavam em sua volta, parados, dando-a privacidade, como se fosse possível. Ela se encolheu na grama e segurou as pernas. O choro e o soluço eram altos e intercalados por gemidos.
O tempo passou, ou não, e os soluços começaram a cessar. Ela tinha varias perguntas.
- Michele? – Ela ignorou. Michele nós precisamos conversar.
Era uma voz desconhecida, grave e forte. Com certa relutância a jovem abriu os olhos e viu um policial com a mão estendida. Ela estendeu a sua e levantou. Junto vieram as dores, com mais outra. Agora havia um buraco muito fundo em seu peito, que tornava difícil respirar, e vinha junto com a realidade que ela fracassara, estava sozinha. Ele a esperou pacientemente e a conduziu para fora do caos. Ela sentou em uma maca e ele encostou-se no carro. No curto caminho Michele ignorou os rostos conhecidos.
- Você é uma garota corajosa! – Ela o olhou, irada. – Os bombeiros a encontraram desmaiada no telhado, o que resistiu ao fogo, abraçada a sua irmã.
Ela o encarou. Seu coração disparou e o buraco aumentou, fazendo-a prender a respiração. Ela fitou o policial falar em seu walk talk e quando se deu conta, estava abraçada com sua irmã, reconfortando-a. Suas sobrancelhas estavam queimadas e seu curto cabelo também, seu braço arranhado, mas ela estava viva. Julia repetia a frase “eu te amo” e “você está aqui” em seu ouvido. Tão frágil. Ela tinha apenas 3 anos.
- Você tem a guarda dela – o policial continuou – por ter 18 anos. Ela sorriu para o homem.
- Obrigado! – foi tudo o que conseguiu dizer.
Agora ele parecia desconfortável.
- Chamamos sua tia e amanha podemos conversar com mais calma. Voce tem que descansar.
Ela se levantou, queria ir embora. Podia sentir o aperto, o buraco, mais intenso e forte do que antes. Havia tantas coisas para resolver. Seus pais não estavam mais ali. Ela abraçou mais forte a pequena Julia e esta correspondeu. Esta estava apoiada bem em sua queimadura, mas não se importava.
- Espere, tem algo que preciso lhe contar. – Ela o encarou, seus olhos negros agora sérios, provocaram um arrepio em seu corpo, sentiu medo. – O incêndio não foi acidente, foi proposital.
Ela fechou os olhos, inconformada, e o olhou novamente, quem faria isso com eles? Ela recuou assustada. Ela sentiu medo, e uma raiva que pode sentir em todos os seus membros, e como se Michele não tivesse entendido o que o policial dissera, ele repetiu.
- Alguém armou para vocês!